Macron acelera com reforma trabalhista. Vai enfrentar protestos
A França raramente se autoqualificou como Estado de bem-estar social. Mas era mais ou menos esse modelo – de origem sueca e britânica – que o país adotava, com um governo que arbitra conflitos entre capital e trabalho, monopoliza os serviços públicos e dá as cartas na economia.
Pois bem, esse modelo levou esta semana uma bela estilingada, com o anúncio, quinta-feira (31/08), dos decretos que modificam radicalmente o chamado Código do Trabalho.
É a versão francesa da CLT brasileira, mas que data de 1910 e que foi quatro vezes modificada em profundidade, a última delas em 1973.
Esse “código”, na França, não é uma única lei. É o conjunto de toda a legislação sobre o tema, reunida em nove volumes e que tem algo em torno de 3 mil páginas.
Uma espécie de labirinto legal, com dispositivos específicos para cada profissão – quantas horas seguidas um professor ou um operário podem trabalhar -, e uma tonalidade voltada à criação e preservação de direitos.
Essa legislação sofreu recentemente dois golpes. O primeiro deles, em 1993, foi com a criação da União Europeia, que transferiu para o bloco de 27 países a atribuição de produzir leis e diretrizes desse conjunto integrado de interesses econômicos e sociais.
O segundo golpe veio com a globalização, a partir dos anos 1990. Justamente o período em que a França, que protegia de modo excessivo sua mão de obra, passou a perder espaço frente às grandes economias mundiais.
O excesso de regulamentações e de pequenos direitos trabalhistas encarecia a produção francesa e tirava dela maior competividade.
Governantes liberais, como os ex-presidentes Georges Pompidou (1969-1974) ou Nicolas Sarkozy (2007-2012) conheciam esse diagnóstico. Mas não tinham força política para negociar mudanças mais profundas.
Um cenário que parece estar mudando com o presidente Emmanuel Macron, eleito em março último e que, um mês depois, obteve com seu partido, o República em Marcha, maioria tranquila na Assembleia Nacional, equivalente à Câmara dos Deputados.
PRESIDENTE PERDEU POPULARIDADE
A Assembleia tem, na França, bem mais poder que o Senado, cujos integrantes são eleitos de modo indireto. Não representam os eleitores, mas, sim, as coletividades locais.
Macron, que ainda não completou 40 anos de idade, propôs duas coisas. Primeira: preservar as vantagens de um Estado competente em serviços como saúde, educação e transportes.
Segunda: aliviar o peso que o Estado exerce sobre a sociedade, com uma carga tributária de 45% do PIB e um crônico déficit fiscal.
A primeira grande reforma de Macron está sendo, portanto, a trabalhista. Ela foi discutida em cerca de 50 audiências públicas a partir de junho, e não será votada por deputados ou senadores.
Essas audiências provocaram uma curiosa marola na opinião pública. Macron, que era apoiado por 66% dos franceses, tem hoje o apoio de apenas 37%. É uma queda que ele pode reverter, com seus cinco anos de mandato.
Paradoxalmente, pesquisa publicada pelo jornal Le Figaro indica que a reforma trabalhista tem o apoio de 52% dos franceses.
Mas é curioso que isso tenha ocorrido quando a população sentiu, na prática, que não era indolor ou mágica a forma de governar centrista, que não se concebe como próxima a herança histórica da direita e ou da esquerda.
O Parlamento delegou ao governo do presidente e de seu primeiro-ministro, Édouard Philippe, o poder de resolver a questão por decretos. Foram os textos anunciados quinta-feira.
Embora as esquerdas, oficiosamente lideradas por Jean-Luc Mélénchon, não tenham formulado palavras de ordem semelhantes às adotadas no Brasil com a reforma trabalhista (“nenhum direito a menos”, etc.), o fato é que esse grupo da oposição a Macron poderá sair enfraquecido.
ALGUNS PONTOS DA REFORMA
O presidente francês não precisa privatizar para ganhar em eficiência. Basta mudar as regras trabalhistas pelas quais o mercado de trabalho funciona.
Três exemplos. O trabalhador demitido sem justa causa terá, a partir de agora, apenas um ano, em lugar de dois, para recorrer á Justiça.
O que indiretamente reduz o período ao qual, como litigante, ele terá direitos próprios ao desemprego.
A seguir, as demissões por redução de custos das empresas passam a ter seu âmbito reduzido. Elas só podem ser discutidas no plano nacional.
No plano interno da empresa, o Estado não tem mais nada a ver com isso. É algo que deve ser deliberado por empresários e empregados.
Por fim, os sindicatos estarão descartados das decisões próprias a quase 80% da mão de obra. Isso porque eles não serão chamados às negociações das micro (até dez empregados) ou médias empresas (até 50 empregados). As negociações serão diretas entre empregados e empregadores.
E isso em questões tão díspares quanto salários, jornadas e condições de trabalho. Os direitos básicos, como férias e décimo-terceiro (“prime du treizième mois”), estão fora da discussão. Em tempo: a França – e nenhum outro país da União Europeia – tem algo semelhante ao FGTS.
Esse “chega-pra-lá” nos sindicatos seria impensável no imediato pós-Guerra, quando essas agremiações – da pró-socialista CFDT à pró-comunista CGT – dominavam o espaço das negociações.
Mas hoje apenas 4% dos franceses são sindicalizados. A população não tem mais apego histórico por seus sindicatos, exceto no setor público, como na categoria dos ferroviários, onde elas promovem periodicamente suas greves.
O que pode agora novamente ocorrer, numa dimensão que dependerá do tamanho das manifestações anti-Macron que os partidos e sindicatos de esquerda convocaram para o dia 12 de setembro.
OS SINDICATOS E A SOCIAL DEMOCRACIA
A verdade, no entanto, é que os sindicatos deixaram de ser os protagonistas que em francês eram denominados como “partenaires sociaux” (parceiros sociais). O mundo do trabalho passou a se organizar de outra forma. O diálogo dentro das empresas começou a dispensar intermediários.
Curiosamente, não é isso que acontece na Suécia, onde o Estado do bem-estar social fez um percurso mais longo e denso, conforme relatado pelo pensamento inovador, no início dos anos 1930, do filósofo e sociólogo Gunnar Myrdal.
Essa forma de social democracia, implantada pelo conjunto dos países nórdicos da Europa, não foi apenas uma maneira original de organizar o trabalho e a economia.
Foi também uma receita intermediária para a polarização entre o capitalismo de modelo norte-americano e o comunismo implantado na União Soviética.
Os social democratas têm uma origem revolucionária – lembrem-se do alemão Ferdinand Lassalle (1825-1864) – e disputavam com os marxistas o projeto de tomada do poder. Aliás, na própria Alemanha, o SPD (Partido Social Democrata) se definia como marxista até 1957.
Mas são coisas do passado. O que o presidente Macron agora deseja é simplificar as coisas, de olho no corte do desemprego, de 9,5% para 7% até 2022. E, para tanto, ele precisa instituir relações de trabalho mais arejadas.
A reforma do Código do Trabalho vai nessa direção.
Fonte: Diário do Comércio