Críticas ao Carf reacendem debate sobre melhor modelo de tribunal administrativo

O anúncio de mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) pelo governo reacendeu o debate sobre o melhor modelo para o processo administrativo fiscal no Brasil. Enquanto governistas argumentam que tribunais administrativos fiscais em outros países não têm as características do Carf – como representantes do setor privado nas turmas e o agora extinto desempate pró-contribuinte -, advogados defendem que o foco deveria estar em outras reformas, que possibilitem o aumento da transparência, além da criação de instrumentos de regularização na fase pré-contencioso, a fim de melhorar a relação entre fisco e contribuinte.

Além do desempate pró-contribuinte, extinto pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, as principais críticas do governo ao atual modelo do processo administrativo fiscal são à paridade nas turmas do Carf, compostas por representantes dos contribuintes e do fisco em igual número, e à demora na tramitação dos processos, atribuída ao número de instâncias.

Os contribuintes podem apresentar recurso nas Delegacias da Receita Federal, e, depois, nas turmas ordinárias e Câmara Superior do Carf. Em nota recente, a Receita Federal afirmou que “não há outro lugar no mundo com processo administrativo com três instâncias, com órgão julgador composto por representantes de grandes contribuintes, e, muito menos, composição paritária”.

Outro argumento do governo é que o Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou, em relatório, que o governo federal avalie a conveniência de manter o modelo paritário no tribunal administrativo.

Após sofrer pressão devido ao anúncio do retorno do voto de qualidade, o governo abriu negociação com o setor privado, representado pelo grupo Esfera, e com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na tentativa de reduzir as resistências à MP 1.160. Nesta terça-feira (14/02), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, esteve no Supremo Tribunal Federal (STF) acompanhado de representantes da OAB para apresentar um acordo que buscou conciliar os interesses do governo e dos contribuintes.

A OAB pleiteou, sob a forma de pedido de liminar na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 7.347, que questiona a constitucionalidade da MP, facilidades de pagamento para as empresas que perderem pelo voto de qualidade no Carf. Além de terem as multas perdoadas, esses contribuintes teriam até 90 dias para negociar o pagamento do débito, sem juros e em até 12 parcelas.

Questionado se a proposta sofrerá críticas de auditores fiscais e se representa um favorecimento aos contribuintes que não pagaram seus impostos, o ministro admitiu que a solução não é considerada ideal pela Fazenda. “A crítica [dos auditores] é válida, mas eu tenho que reverter uma situação [o desempate pró-contribuinte] que não foi eu que criei, nem esse governo.

Temos que corrigir os erros cometidos pela gestão anterior. Praticamente todos os jornais se manifestaram contra a Fazenda Nacional em um caso de moralização. Veja a dificuldade que é convencer o próprio Congresso Nacional que havia uma reparação a ser feita”, afirmou.

Ao JOTA, advogados defenderam uma postura de diálogo do governo com os contribuintes. Os especialistas argumentam que não há instrumentos de autorregularização ou de regularização do débito na fase pré-contencioso no Brasil. Além disso, afirmam que o contribuinte precisa confiar na imparcialidade do processo administrativo fiscal para que o contencioso de fato se encerre, sem que as empresas recorram ao Judiciário.

Cooperação

“Não existe um ‘Carf’ em outros países, isso é verdade. Mas tem particularidades no sistema tributário e no sistema de resolução de disputas no Brasil. Na realidade, a gente deveria estar falando em medidas que fossem trazer um pouco mais de saúde, simplicidade e cooperação entre fisco e contribuinte”, defende Marcos Matsunaga, sócio do Ferraz de Camargo e Matsunaga Advogados.

Entre as especificidades do sistema brasileiro, o advogado cita a impossibilidade de o contribuinte ajustar erros no recolhimento na fase anterior ao contencioso.

“Em outros países, quando você está em fase de pré-fiscalização, pode haver o que chamam de settlement [acordo]. O fiscal propõe um ajuste, que normalmente não vem acompanhado de uma multa. Há um sistema de solução de disputas que normalmente leva à resolução”, diz.

Para Matsunaga, o ideal seria algo parecido com uma das medidas do pacote econômico anunciado pelo governo no último dia 12 de janeiro: a possibilidade de confessar e pagar o débito sem as multas de ofício e mora antes do início do procedimento fiscalizatório. Na prática, é algo semelhante ao instituto da denúncia espontânea, com a diferença de que é pré-fiscalização.

Apesar de considerar a iniciativa positiva, o advogado ressalta que ela é limitada, pois o governo estabeleceu um período de duração até 30 de abril deste ano. Matsunaga também critica o patamar de multas e juros aplicados no sistema brasileiro, que considera elevado.

“Em outros países, não existe o volume de multa e juros relacionados a disputas tributárias que a gente tem no Brasil. Temos não apenas patamares muito altos, como o de 75% [do débito tributário], que é o padrão para multa de ofício, como, com a qualificação, [a multa] vai para 150%, podendo chegar a 225%. Quando falamos de modelo de resolução de disputas, não existe a possibilidade de ajuste [pelos contribuintes] sem a imposição de multas”, diz.

Independência

Para João Dácio Rolim, sócio-fundador do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados, a polêmica torna o momento atual propício para discutir o modelo brasileiro de resolução de disputas tributárias, já que, em sua avaliação, a experiência atual não satisfaz nem o fisco nem os contribuintes.

“Acho que a experiência brasileira não está sendo interessante. Tanto o fisco quanto o contribuinte estão reclamando. Talvez seja o caso de seguir um terceiro modelo, que atenda aos principais direitos tanto do contribuinte quanto do fisco”, observa.

Para o tributarista, no entanto, seja qual for o modelo adotado, é preciso que o órgão de resolução de disputas tenha credibilidade junto aos contribuintes. “Se você tem um órgão que não é independente, é mais uma fase que o processo tem que atravessar e o contribuinte não teria segurança para aceitar a decisão. Essa questão da redução de litigiosidade passa também pela independência do órgão [de julgamento]”, avalia.

Segundo o advogado, a eficiência buscada pelo governo, que pretende dar celeridade ao processo administrativo fiscal, não passa apenas por decisões mais rápidas, mas por decisões “justas” e “independentes”. “Se o órgão não é independente, as decisões serão objeto de recurso judicial. Isso [julgamento por um órgão independente] facilita a aceitação da decisão, tanto por parte do contribuinte quanto por parte do fisco”, argumenta.

Na avaliação de Rolim, o Congresso Nacional pode ser um bom fórum de discussão para construir um consenso envolvendo governo e contribuintes. “[A solução] não vai agradar 100% a nenhuma das duas partes, pois tem que se chegar a um meio termo. Mas não é possível o órgão [Carf] ficar sofrendo críticas das duas partes. Essa questão da independência, para mim, é muito importante. Vai agilizar as decisões e gerar segurança, com menos recursos ao Judiciário. O contribuinte, se perder, tem que ser com uma decisão bem fundamentada”, diz.

Indicação de conselheiros

A advogada Gisele Bossa, sócia do Demarest Advogados e ex-conselheira do Carf, pontua que, mesmo em um cenário em que metade dos conselheiros das turmas do tribunal são representantes dos contribuintes, a última palavra na nomeação é do governo.

“É uma lista tríplice [de candidatos a conselheiro], e quem bate o martelo é o ministro da Fazenda. Quem define se o conselheiro vai ou não ser reconduzido, no final, é a Casa Civil”, comenta a ex-conselheira, que também defende o perfil “técnico” dos julgadores.

“Quantas vezes eu votei contra o contribuinte? Os conselheiros têm que obedecer a critérios de moralidade e imparcialidade. Temos o Comitê de Ética do Carf. Não existe a possibilidade de não motivar uma decisão enquanto julgador, de acordo com sua livre convicção e imparcialidade.

A gente também tem que respeitar e aplicar [os recursos julgados em sede de] repetitivo [no Superior Tribunal de Justiça] e [os temas de] repercussão geral [no Supremo Tribunal Federal]. Está no regimento do Carf, sob pena de perda de mandato”, comenta.

Bossa defende ainda a implantação de mecanismos que aumentem a confiança na relação entre fisco e contribuintes. “Nos outros países, nem se chega a discutir essa questão de voto de qualidade. Parte-se da boa fé, há um código de defesa dos contribuintes, câmaras de conciliação e arbitragem dentro da esfera administrativa. Criticar a paridade dentro do que a gente tem enquanto relação [fisco-contribuinte] é um pouco complicado”, acredita.

Comparação antiga

A comparação do modelo adotado no Carf com o processo administrativo fiscal em outros países não é um tema novo. A advogada Carla Novo, pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper, lembra que o debate foi levantado em duas das três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que questionam a constitucionalidade do desempate pró-contribuinte no STF.

As petições iniciais das ADIs 6.403 e 6.415 afirmam que, no modelo paritário, o voto de qualidade de um representante do fisco seria uma forma de preservar a prevalência do interesse público e a legitimidade do lançamento fiscal.

As duas ADIs descrevem o modelo de julgamento administrativo adotado na Alemanha, Argentina, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal, com a intenção de demonstrar que a paridade é adotada de forma isolada pelo Brasil em comparação às demais jurisdições, justificando a adoção do voto de qualidade.

Segundo Carla Novo, a partir dos argumentos nas duas ADIs, o Núcleo de Tributação do Insper decidiu analisar os sistemas de resolução de disputas tributárias nos sete países citados. A avaliação usou dois critérios como ponto de partida: a participação dos contribuintes no pré-contencioso e a composição dos órgãos de julgamento nesses países.

Mecanismos pré-contencioso

Os resultados preliminares mostram que seis dos sete países possuem medidas alternativas de resolução de disputas, característica que não estava presente apenas na Espanha.

Essas medidas incluem a possibilidade de transacionar débitos na Alemanha, França, Estados Unidos e na Itália, sendo que, neste último país, isso é possível nas fases pré e pós-contenciosa. Além disso, a arbitragem tributária está presente em Portugal, Itália e EUA.

Já em Portugal, foi constatada a participação de contribuintes nas etapas de elaboração, revisão e/ou interpretação da norma tributária. O país criou, em 2014, o Fórum dos Grandes Contribuintes, com o objetivo de estabelecer um espaço de diálogo para melhorar a relação entre fisco e contribuinte.

Em 2019, o Fórum aprovou um Código de Boas Práticas Tributárias (CBPT), com um conjunto de recomendações voluntariamente aceitas pelas empresas e pela administração tributária.

Composição dos tribunais

Com relação à composição dos tribunais, a análise indicou que os órgãos de julgamentos tributários na Alemanha, em Portugal, nos Estados Unidos e na Itália são compostos por julgadores que assumem a função de juízes, sendo o cargo exercido em mandato vitalício na Alemanha e na Itália. Neste último país, os julgadores são selecionados a partir de um ranking dos candidatos indicados pelo Ministro das Finanças.

A participação do Legislativo e do Executivo no processo de indicação ou seleção dos julgadores foi identificada na Alemanha, onde a seleção dos julgadores é feita por meio de comissão composta pelos ministros dos 16 Estados federados e 16 membros eleitos pelo Parlamento, e nos Estados Unidos, onde juízes são nomeados pelo Poder Executivo e sabatinados pelo Senado.

Na Argentina, os julgamentos administrativos são realizados pelo Tribunal Fiscal de La Nación (TFN), autarquia com turmas de julgamento formadas por advogados e doutores em ciência econômica, indicados pelo Poder Executivo após a realização de concurso para a aferição de conhecimento em matéria tributária. Na Espanha, por sua vez, o tribunal é composto unicamente por representantes do Fisco.

Diversidade

Para Carla Novo, os dados do levantamento, feito a partir da legislação e os sites dos órgãos julgadores e deliberativos sobre políticas fiscais dos países, mostram a diversidade na estrutura dos órgãos de solução de disputas tributárias. Conforme a pesquisadora, isso sinaliza que eventuais comparações entre o Brasil e outros países têm de levar em conta diversos critérios.

“A gente não pode pegar um único elemento e fazer a comparação quando esses outros países têm diversos outros elementos que resultaram naquela estrutura de contencioso tributário. Comparativamente [ao Brasil], outros países têm uma estrutura com instrumentos mais desenvolvidos de autorregularização antes do início do processo [administrativo], além de instrumentos de resolução de conflito”, afirma.

Na avaliação da advogada Maria Raphaela Matthiesen, que também participou do levantamento, um dos problemas nas medidas anunciadas pelo governo é a referência à intenção de aumentar a arrecadação, o que colocaria em cheque a imparcialidade do Carf.

“O Carf tem que contar com a presunção de imparcialidade. Se você alterar a regra de desempate com a intenção de mudar a arrecadação, está pressupondo a parcialidade de quem dá o voto de qualidade, que os autos [de infração] sempre serão mantidos por quem for desempatar. A função do conselho é analisar a legalidade daquelas autuações”, observa.

Qual modelo?

O JOTA procurou o Ministério da Fazenda para entender qual seria o melhor modelo para a solução de disputas fiscais e em quais estudos se baseiam as alegações sobre o Carf. As respostas ao questionamento foram encaminhadas pela Secretaria Especial da Receita Federal.

O órgão enviou à reportagem o relatório The Tax Disputes and Litigation Review, de 2019, da empresa Law Business Research, do Reino Unido, especializada em serviços de informação. O relatório abrange 26 países, a maioria da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A Receita pontuou que, conforme o documento, na maioria dos países, os contribuintes têm recursos administrativos julgados por agentes do fisco.

“A experiência internacional faz sentido, pois os recursos administrativos são considerados oportunidade para que o fisco revise muito rapidamente a autuação, como providência prévia para que o contribuinte possa eventualmente levar a discussão ao Judiciário.

A rigor, em muitos desses países, o contribuinte passa a ter direito a ir ao judiciário caso o fisco não se manifeste sobre o recurso em determinado prazo, usualmente fixado entre 6 a 12 meses”, disse o órgão.

A Receita Federal citou ainda análise de 2020 do Centro Interamericano de Administraciones Tributárias (CIAT), mencionado no Acórdão TCU 366/2021. “A paridade tampouco é verificada em qualquer outro colegiado administrativo fiscal entre os 16 países analisados”, pontuou.

Por fim, a Receita se baseou em uma afirmação do Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de que “as empresas de grande porte fazem uso estratégico das esferas administrativa e judicial do contencioso fiscal”, para concluir que as grandes empresas utilizam o Carf para postergar o pagamento de tributos.

“Quando se analisa que o processo [administrativo] no Brasil dura mais de seis anos, que os contribuintes têm custo baixíssimo (não precisam depositar ou garantir valores, o crédito fica suspenso e com Selic simples), a conclusão é: as grandes empresas utilizam do processo para adiar indefinidamente o pagamento de tributos, fazem um financiamento barato”, diz o órgão.

Por MARIANA BRANCO e GABRIEL SHINOHARA

Fonte: JOTA